15 de maio de 2008

Francesca Woodman...
























O CORPO COMO LABORATÓRIO DE SI...


Algumas imagens chegam até nós provocando uma sensação de estranhamento. Pela força indescritível de sua presença, vão cada vez mais atraindo, arrastando e seduzindo-nos como um canto de sereias. Não há miragens, o inferno é ver. Essa viagem nos causa um quase mal-estar, mas sua força, seu modo de nos arrancar os olhos, consiste nesse quase. A imagem mantém-se em nós tão somente por ser esse fora indescritível, pelos lances que vimos, mas não conseguimos apreender, como um vulto. Assim encontramos as fotografias de Francesca Woodman, figura curiosa que, como suas imagens, seduziu sem deixar pistas. Woodman entrou para a fotografia usando o corpo como experiência, como laboratório de si. Fez uma viagem sem volta ao limiar do corpo, como se percorresse seus limites para encontrar o inevitável: seu devir-outro-fotográfico, sua imagem-vulto: trata-se de uma quase assinatura como se no meio do tumulto animal da vida, uma outra imagem, ou sombra, se intercalasse, não como pólo gerador daquelas imagens, como autor da obra inscrita mas, pelo contrário, como o que deixa apenas um rastro secreto, como aquele que ao movimento, ao que é animado, confundindo-se com a pedra, tornada para nós tumular – aquela que guarda o segredo do nascimento da arte. Não é, portanto, uma alma ou subjetividade criadora, mas um corpo deitado, na dor, no sono ou na morte. É a dispersão do corpo, do rosto e do próprio olhar, de um corpo que jaz enterrado na fronteira entre a ausência, a aparição, o desaparecimento. De um corpo que sempre reflete à sombra de uma outra imagem, uma imagem falha; que quando mirado, se dispersa entre as coisas do mundo. Nessa esfera não há representação do rosto nem, portanto, do olhar. Seu rosto nada revela. A verdade de sua aparência é um enigma, um exílio. Sua substância acontece, fora de si, no espaço que há entre a força que o move e o mundo que o acolhe. Sua imagem não é a revelação de uma realidade, mas de uma sombra, de algo que é inteiramente vivo e no entanto não orgânico. Há nas fotografias de Francesca algo que nos força a pensar. Este algo nos arremessa de encontro a realidades em que muitas vozes se atravessam, por vezes ouvimos Artaud: o pulsar o corpo sem órgãos; por vezes Bataille: a febre e a intensidade; mas por vezes, entre a sombra e a claridade o canto silencioso de Rilke: a sombra da morte. Mas isso, esse turbilhão de coisas e vozes, nas fotografias de Francesca Woodman, só pode ser apreendido a partir de uma perspectiva da sensação, em vôos que o olhar mergulha no diverso e nele se perde, sob a égide da paixão, da dor ou da morte. Em sua primeira característica, e sob qualquer tonalidade, essas imagens só podem ser sentidas. Não é uma estrutura, mas uma abertura, a fissura pela qual os olhares se atravessam. Ela é também, de certo modo, o incomunicável; segundo o caso da arte, o incomunicável, passível no entanto de comunicação. Nas suas fotos, cada imagem parece perdida de uma atmosfera identitária, em cada foto é sempre outra, como se seu corpo estivesse mergulhado em um contínuo jogo de simulacros onde a origem, a verdade, a matriz, há muito se apagou. Não há realidades, mas tudo é o que é: um corpo estendido no deserto de uma paisagem. O deserto é a fotografia, mas o corpo parece atravessado de sensações, de febre, de morticidade. Tudo parece vivo e morto. como se a vida fosse o fora da morte, mas a morte o seu dentro, sua afirmação inevitável.

Francesca transcorre pela linha que cruza de uma realidade a outra. Nas suas fotos, as linhas estão sempre se encontrando, fabricando dobras, redobras, criando um aberto de possibilidades com a força de uma máquina desejante, que da sua intensidade-corpo, passa para uma máquina-desejo, que, no seu funcionamento, engendrada uma corrente de fluxos, cortes, vultos, peles. Nas suas imagens, há sempre uma pulsação de intensidades operando no seio de um acontecimento: série binária é não linear vazando por todas as direções. O desejo não cessa de efetuar acoplamentos de fluxos, pensamentos, volúpia, sobra, pele. O corpo de Francesca parece amarrado ao seu limite, mas dele escorre uma leveza indescritível. A sua imagem revela-se como uma quase epifania, mas nunca da ordem de um sagrado. Sua imagem atravessa a fotografia como o Monge Negro rasga a retina do jovem Kovrin, conduzindo-o ao seu limite, mas a atração também. Kovrim é atraído a ir, e vai atravessando todos os riscos que implicam esse ir: Kovrin reteve a respiração, seu coração parou de bater e o mágico, extático transporte que há muito tempo esquecera, voltou a palpitar em seu coração. O susto é inevitável. Assim foi Francesca na sua experiência com a fotografia, mas sobretudo, na sua viagem à superfície do corpo. Lembremos Valery: o mais profundo é a pele. Essa foi a sua viagem, ao profundo da superfície, às entranhas da derme. Assim vamos nós ao encontro das suas imagens, numa experiência da sensação e do ver. O susto arderá através das retinas.

Francesca Woodman nasceu em Devem, Colorado, em 1958. Começou a fotografar aos 13 anos. Seu foco de experiências era o próprio corpo. Em Janeiro de 1981 publica o livro “Disordered Interior Geometries”. Uma sema depois, atravessa a janela do seu apartamento.

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